Olá,
No final de Janeiro decidi largar por completo as redes sociais. Já tinha abandonado o Facebook há uns anos e o Twitter nunca me fez muito bem à ansiedade. O TikTok não me chamou a atenção. Ainda estava preso à noção - falsa - de que precisava de ter Instagram para saber das coisas que me interessam. Para chegar às publicações que queria, saber dos concertos que me interessavam, das pessoas de quem gostava. Vivia, como tantos de nós, presos à infinitude do scroll. Também dava por mim agarrado às pescadinhas de rabo na boca do Reddit, sob o pretexto de precisar de acompanhar as discussões profundas sobre a Terra-Média do r/LOTR, ou as celeumas do r/portugueses. Spoiler Alert: não preciso.
Quis voltar a ganhar tempo, atenção e foco. Sentia que as estatísticas das horas de ecrã que o meu smartphone registava eram sempre menores do que a realidade. Não eram. Estamos a falar de horas a ver publicações e reels de forma anestesiada. A sentir a necessidade de desbloquear o telefone e abrir uma das aplicações de eleição. A urge de querer publicar, ser visto e viver na ilusão de contacto com quem seguia ou interagia. Constrói-se, então, uma falsa realidade: acreditamos numa proximidade mediada digitalmente enquanto sacrificamos a presença física. Suprimos a necessidade de sermos relevantes na vida dos outros através das fotografias, stories, vídeos e comentários. A nossa humanidade sustenta-se, então, com versões diluídas daquilo que realmente precisamos: experiências no mundo real, vivências, toque físico e presença. Por tudo isto, apaguei as aplicações de redes que ainda me restavam. A coisa mais parecida com que fiquei foi o Substack, cuja natureza das publicações de longo formato não contribui para fazer a minha atenção refém da mesma forma. Começa a ter algumas questões, mas escreverei sobre isso noutra altura.
Não vi a luz, nem atingi a budicidade com este desmame da dopamina das redes. Não me tornei um guru-livre-das-amarras-da-oligarquia-digital. O que ganhei foi tempo, o mais valioso dos recursos na nossa existência. Nem sempre tive essa noção: quando era mais novo, queria que o tempo passasse para crescer, para acabar a escola, para fazer chegar o ideal de ser adulto o quanto antes. Agora, criado e crescido, percebo a importância do tempo: o que fazemos com ele define quem somos e é um recurso escasso e finito para todos os sonhos que temos dentro de nós. Tenho tempo para outras coisas que não a existência vazia de olhos postos num ecrã a iludir o sistema hormonal de recompensas. Comecei a ler muito mais. Muito mais, mesmo. Leio mais newsletters, crónicas, livros de ficção e não-ficção. À medida que leio mais, leio mais rápido, assimilo mais rápido e sinto paz. Perante a incredulidade com o mundo atual, a leitura permite-me não só um escape, mas também um melhor entendimento do que me rodeia. Ando menos ansioso; atribuo o facto de estar menos exposto ao medo-de-perder-as-coisas, o famoso F.O.M.O. (Fear Of Missing Out). Se quiser saber de alguém, envio-lhe uma mensagem. Faço um telefonema, combino um café ou um almoço. Percebi que muitas pessoas que sentia perto de mim eram apenas avatares de zeros e uns e que, no fundo, estou conectado na vida real a uma mão cheia delas. A leitura e o tempo também me dão mais espaço para ser criativo. Sou estimulado pelo que leio e acabo com novas ideias, novos sonhos e renovada criatividade. Imagino projetos, ambições, intenções. Reflito mais sobre elas. O tempo também é isto: um espaço para sermos livres de pensar.
Fui apanhado de surpresa com a opinião do Fred Rocha na newsletter do Fumaça que ele publicou no início de Junho. Há demasiado tempo que não refletia sobre o estado da internet e, confesso, sou uma vítima da repetição e do uso comodista das tecnologias: deixei de ter presente o que a internet foi, o que representava, o que permitia e o que a tornava num sítio tão especial. De repente, a enorme rede de informação estava a ser filtrada pelos gigantes tecnológicos através das redes sociais e nesse processo muito se perdeu. Primeiro a diversidade, a espontaneidade. Mais tarde, o espírito comunitário e de construção de um bem comum. Depois dessa liberdade, ficámos reféns de algoritmos ominosos, tornámo-nos matéria-prima para extração de dados e vivemos amarrados aos termos e condições destas plataformas. Deixámos de poder escolher e somos alimentados intelectualmente por uma máquina sedenta de lucro. A liberdade de expressão fica confinada aos sempre mutáveis interesses e contextos de cada corporação. A internet mudou. Primeiro, para uma ilusão de que era melhor e que servia os nossos interesses. Que nos deixava mais conectados. Depois foi mudando, para que os milhões de utilizadores começassem a servir os interesses das empresas que criaram estes espaços de interação social. Invertemos a lógica e fomos aceitando, gradualmente, as mudanças, escudados no conforto e utilitarismo das suas funcionalidades.Tudo isto apelando ao pior que há humanidade, alimentando o conflito e a polarização. Acabámos onde estamos hoje: numa internet tudo menos livre.
Tenho acesso à rede mundial desde 1996. Fui um privilegiado que pôde acompanhar desde os onze anos a rede a crescer, a ganhar velocidade e a tornar-se nessa entidade omnipresente que é hoje. Se me perguntasse, em frente ao Windows 95, munido do navegador da Netscape, à procura de imagens do Dragon Ball para vender na escola, que em adulto teria acesso à internet na palma da minha mão eu diria que era impossível. Coisa de ficção científica. Os carros voariam primeiro. A internet que conheci era uma espécie de comuna virtual que lutava pela informação livre. O acesso universal a conteúdos diversos, a sacralidade dos primeiros motores de pesquisa como o Altavista e o Yahoo e a possibilidade de termos o nosso cantinho digital eram autênticos tesouros. Era o contrário do mundo real, onde tudo tem um custo, demasiadas vezes incomportável, na WWW podíamos criar a nossa página, com o nosso horrível estilo de finais dos anos 90. Podíamos exercer um verdadeiro direito à autodeterminação. Lembro-me das primeiras páginas que fiz com HTML rudimentar. Uma ou duas páginas que acabavam por se tornar em projetos dantescos com as configurações e otimizações que íamos fazendo.
As redes de IRC vieram mudar tudo na comunicação da pequena/média burguesia a que pertencia: salas de conversação em tempo real a que podíamos aceder através do nosso computador, a qualquer hora, e ficar a conversar horas a fio. Cheguei a fazer diretas a conversar com pessoas de todo o mundo na Dalnet, uma rede internacional onde descobri o #portugal, o canal dos portugueses. A partir daí, descobrir a PTnet foi um passinho: uma rede portuguesa com vários canais temáticos que marcaram gerações. O #punk, o #metal, o #herculan0 da minha escola secundária na altura, #(sic)army do clube de fãs de Slipknot. Escrevo estas linhas com uma nostalgia imensa. Da sensação de liberdade, de poder conhecer pessoas que de outra forma seria impossível. Os encontros presenciais foram, na maioria das vezes, épicos. O software de acesso que usava era o mIRC, que permitia grandes customizações através de programação. Assim nasceram os scripts, variações pré-programadas do mIRC, que abriram um novo mundo a milhares de utilizadores, que automatizavam tarefas, que facilitavam outras. Depois do HTML, foi aqui que entrei no mundo da programação a sério: percebi o que era um fluxograma de informação, linhas de código condicionais. Um faroeste maravilhoso para me frustrar e perceber o potencial de um programa informático. Era shareware, mas sempre o senti como gratuito. O espírito era esse: programar para nós, mas partilhar com os outros.
Os blogs começaram a nascer em força na viragem do século. Páginas de pessoas compostas por artigos. Plataformas que permitiam escrever e publicar com facilidade e sem grande necessidade de conhecimento de programação. A publicação online começava a democratizar-se. As pessoas com um computador e acesso à internet podiam criar páginas com artigos que publicavam. Uma espécie de zine virtual, sem custos de produção, acessível a todos. Acompanhei o boom da blogosfera na altura. O Paulo Querido do VamoLáVer na altura publicou um livro chamado “Blogs” que comprei logo que saiu para aprofundar o meu conhecimento da tecnologia e cultura à volta. Foi também um dos criadores da plataforma Weblog, onde se podiam alojar blogs. Eu lia diariamente dezenas de blogs, de pessoas ultra interessantes, com vivências totalmente diferentes da minha. Em Portugal existiam centenas de blogs, alguns dos quais bastante famosos, de política, literatura, cultura e humor. Quem não se lembra de O Meu Pipi?
Esta viagem nostálgica evidencia o óbvio: havia uma liberdade assente num espírito de comunidade que, com advento das redes sociais, se esfumou por completo. Plataformas gratuitas, abertas e acessíveis onde a liberdade de expressão era imperativa. Claro que também já havia trolls das cavernas nesta altura. Conteúdos indesejados, discriminatórios e perigosos. Mas a maioria das pessoas advogava a liberdade de expressão assente no respeito mútuo. A liberdade de acesso à informação era um imperativo. A partilha do conhecimento, dos dados, das dicas, eram as fundações desta tecnologia ao serviço da humanidade. Não o seu contrário. Gostava que a internet pudesse, aos poucos, retomar o seu propósito inicial: uma rede de partilha de informação, em espírito de código aberto, com o propósito de tornar o mundo um sítio melhor ao invés de procurar o lucro irresponsável. Voltar a descentralizar e incutir em todos os seus utilizadores um espírito verdadeiro de apoio mútuo, de interajuda, de cooperação. Onde se programam protocolos de comunicação de dados e softwares pelo bem comum.
A informação é poder. O conhecimento permite saltos evolutivos enormes. A tentativa de privatização desta rede por parte dos grandes gigantes tecnológicos, que a cada dia que passa assumem o seu plano de gatekeeping dos conteúdos online, é a prova do manancial de possibilidades que uma rede mundial de informação contém em si. Todos querem capitalizar. Na viragem do século, o caso Napster abalava o mundo da indústria musical. Vieram para a ribalta as questões dos direitos autorais, de reprodução e qual a legitimidade da partilha gratuita de música e, mais tarde, dos conteúdos audiovisuais. Advogava-se o direito dos autores e criadores a serem pagos pelas suas criações. Uma reivindicação justa, mas que perante a força da liberdade da internet estava a esbarrar no acesso fácil a conteúdos pirateados - mas gratuitos. A fome de cultura, a libertação das editoras e distribuidoras, falou mais alto. O capitalismo começava a abanar: ouvir a música que queremos sem limitações financeiras foi um conceito inovador e profundamente transformador. O Spotify foi criado em cima da premissa: o acesso à música que queremos, com qualidade. Mas teve que convencer não os músicos, mas as editoras, da sua inevitabilidade. Passámos a pagar uma subscrição que alimenta os bolsos dos intermediários da indústria e que pouco ou nada dá aos seus criadores. Mantivemos o problema: os músicos são mal pagos pela reprodução feita das suas músicas mas utilizamos a estrutura criada de partilha de música para enriquecer os grupos financeiros ligados à indústria da música. Que irónico, mas tão revelador do poder da informação e desta globalização digital.
Não nego o enorme poder e utilidade prática das redes para muitas pessoas e pequenos negócios. Percebo que a promoção de serviços e bens tenha nesses aglomerados de milhões de utilizadores uma saída financeira para muitas pessoas. Mas a internet que eu quero requer alguma ação concertada da minha parte. Procurar formas que não contribuam para a uniformização do acesso e partilha da informação. Em vez de aceitar os canais mais fáceis das redes sociais, procurar alternativas ao fluxo noticioso e apoiar da forma mais direta possível o bom jornalismo. Subscrever os seus serviços, aceder ao feed de RSS, ir diretamente à fonte. Para isto é preciso assumir uma postura ativa, e não passiva, na forma como lidamos com a informação diariamente. Em vez de receptáculos apáticos e amorfos, somos atores empoderados na procura de informação. Porque, sejamos honestos, o que consumimos através das redes sociais é uma versão da Wish da realidade. E tende a piorar. Podemos partilhar o nosso conteúdo com o mundo, como originalmente partilhámos, nos nossos cantos digitais. Criarmos páginas pessoais, jardins digitais e interligarmo-nos com pessoas que partilham da nossa visão do mundo, da rede, da informação. Criar webrings, aqueles circuitos antigos de vários sites interligados por tema, por interesse. E apoiar os cantos de outros e beber desse manancial que é a humanidade no seu estado livre. A internet pela qual quero lutar precisa que os seus milhões de utilizadores percebam que essa rede enorme é mais que as páginas de uma rede social. Que existem outras maneiras de interagirmos. Outras redes sociais prezam pela ausência de algoritmos orientados para extração de dados e maximização do lucro. Podemos voltar a conteúdos de formato longo - como esta explosão de adesões no Substack em 2025 da comunidade portuguesa tem vindo a provar. Há uma saturação com esta economia de atenção e há uma sede enorme de conteúdo mais sumarento.
Gostava muito que os meus filhos pudessem vir a conhecer este lado da internet. Que não fosse meramente uma ferramenta utilitária, um serviço que nos é prestado, um funil por onde o mundo passa. Porque não os quero reféns do pensamento único, da visão miópe, nem a beber o que as corporações tecnológicas lhes impingem. O tal sentido crítico, sobre o qual já aqui escrevi tantas vezes, é precisamente para isso que serve: para termos a meta cognição do que nos é dado. Estou a preparar algumas mudanças na forma como comunico com esta rede. Vou celebrar o segundo aniversário destas crónicas com nova cara, nova atitude e presença online. Já consegui algumas mudanças importantes na forma como consumo a informação. A libertação das redes sociais empurrou-me para a procura de outras fontes e leituras mais conscientes. Há um espaço mental enorme quando nos vemos livres do imediatismo. E uma maior consciência de que são os nossos atos, por mais desconfortáveis que sejam, que se tornam na mudança que queremos ver no mundo. E mesmo que sejamos uma gota no oceano, podemos viver de acordo com as nossas intenções e valores. Num mundo de egoísmos, ódios, intolerâncias e conformismo bem que precisamos remar contra a maré.
Abraço-vos,
João
Há textos difíceis de ler pelas mais variadas razões. Este último da
é um deles, e acho que apela a uma reflexão mesmo muito importante por parte dos homens. A autora respondeu ao meu comentário com um desafio que ainda não sei se é possível responder. Até lá, fiquem com a leitura.
A propósito da reflexão de hoje, a
recomendou numa nota este artigo maravilhoso sobre como podemos começar a largar a tecnologia americana e caminhar para uma maior soberania digital. É uma espécie de guia com alternativas ao produtos e serviços que usamos regularmente que vale muito a pena.Ainda estou a ler o calhamaço da Emma Goldman. Estou mesmo a gostar, mas sinto que a senhora foi mesmo detalhada na descrição das suas vivências. Estava a intercalar com o da Arendt, mas entretanto pausei esse projeto. Comprei, finalmente, o livro com as entrevistas ao José Mário Branco e tem sido esse o meu limpa-palato. Uma autêntica maravilha que me faz ficar triste por não ter conhecido o homem. Daquelas pessoas que gostaríamos de passar uma tarde inteira a conversar.
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De há uns tempos para cá ando a refletir a ideia de largar o instagram, mas também confesso o vício de partilhar a minha vida esperando uma reação do outro lado. Por isso, de vez em quando, decido fazer uma pausa e só usar a rede para ver certos conteúdos (não tenho paciência para fazer scroll durante muito tempo, até porque é difícil captar a minha atenção com coisas superficiais, e, assim, acabo por interagir só contas sobre livros, não sendo muito exposta a outros ecossistemas). Só que ao ler o teu texto, apercebi-me a irritação que me causa servir de "matéria-prima para extração de dados" nestas plataformas. Reprovo-me por não gostar do gosto, mas jogar com as suas regras. Enfim... quero refletir ainda mais antes de tomar uma decisão. Não é fácil largar este vício.
Gostei imenso desta reflexão: tem tanto sumo que nem sei por onde começar. Sou mais nova mas também vivi a era dos blogues e tive uns 4 ou 5. Eram tempos mesmo felizes. Fico muito nostálgica quando penso nisso, e confesso que tenho voltado a sentir um pouco dessa magia aqui no Substack (vou ficar à espera do teu texto sobre o Substack e as questões que sentes que se estão a levantar). Infelizmente ainda não me consegui desligar das redes. Sinto que sempre vivi cronicamente online e uso muito as redes para fins profissionais (estar em cima de acontecimentos, encontrar/contactar pessoas, etc.). Um dia talvez consiga. Até lá vou tentando reduzir o tempo que perco a scrollar. O kobo tem ajudado porque troco um ecrã por outro mas sinto-me muito melhor porque estou a ler e a investir o meu tempo em conhecimento/prazer intelectual.