Colo
“Agora, já o barquinho balouça. Aos poucos se vai tornando leve como mulher ao sabor da carícia e se solta do colo da terra, já livre, navegável.” Mia Couto em Terra Sonâmbula
Olá,
Tive o privilégio de, na semana passada, ter estado numa bolha de empatia, consciência e acolhimento: concluí a minha certificação em Parentalidade Consciente. Trouxe comigo inúmeras ferramentas, reflexões e, acima de tudo, vontade de fazer as coisas de forma diferente. Comigo, com os meus filhos e com todas as pessoas que se cruzam na minha vida. Vim de um espaço seguro onde pude exercitar formas de ser mais empático e mindful. Viktor Frankl escreveu:
Entre o estímulo e a reação há um espaço.
Neste espaço está o nosso poder de escolher a nossa resposta.
Na nossa resposta está o nosso crescimento e a nossa liberdade.
No fundo, acho que queria aumentar este espaço que o Frankl refere. Procuro, todos os dias, processos para o conseguir. Já tenho algumas estratégias em curso que dão ótimos resultados, mas sinto-me sempre aquém. Há uma voz interior - eu chamo-lhe o Bêbado e a origem do nome pode vir a dar numa crónica - que insiste em criticar-me, julgar-me e exige sempre mais de mim.
Numa das manhãs desta semana, enquanto levava o A à escola de manhã, perguntei-lhe se ele tinha guardado o livro da biblioteca escolar na mochila, para o devolver. Era a continuação de parte de uma conversa que acontecera na noite anterior, em que tinha sugerido colocar o livro na mochila para não haver esquecimentos. Depois voltei para a cozinha para dar seguimento ao jantar e não se voltou a falar sobre o assunto. Ainda no carro, ele ficou muito nervoso e eu, frustrado e enervado pelo facto de ter falado disto na noite anterior e ter visto a minha sugestão ignorada, achei por bem explicar-lhe que iria acontecer uma consequência natural: talvez não pudesse levantar um livro novo no dia de ir à biblioteca da escola. Disse-o com a intenção clara, mas inconsciente, de o fazer ficar aflito. Ele teve um colapso emocional daqueles em que as palavras se tornam gemidos entre o choro dorido que brota da alma quando se mistura angústia com frustração. Eu percebi o meu erro crasso nesse momento e tentei explicar-lhe que estava tudo bem, que não entregar o livro não era o fim do mundo. Não funcionou. E só me restou acolher e abraçar. O choro acalmou e conseguimos, até, perceber que o dia da entrega do livro era só no dia a seguir. Mas também tenho os meus limites pessoais e, nessa manhã, tinha-me organizado para sair mais cedo. Vi os minutos a fugir e acabei por o entregar na escola, ainda meio triste. Estava-me a abraçar repetidamente no portão e até me pediu colo. Dei colo, abracei, mas acabei por lhe dizer que tinha que me ir embora. Fiquei a sentir-me o pior pai do mundo a olhá-lo cabisbaixo enquanto atravessava o portão da escola. O Bêbado começou logo a criticar-me, a fazer-me sentir insuficiente, egoísta e egocêntrico. Esta voz interior gritava-me que fui um péssimo pai por permitir deixar um filho triste na escola e colocar as minhas necessidades em primeiro plano.
Já na estação dos comboios, mandei uma mensagem de áudio à Sofia a explicar tudo o que se tinha passado e a desabafar como me sentia. Adjetivei as minhas emoções e identifiquei as necessidades que senti que não estavam a ser nutridas. Se ela me tivesse respondido a dizer que realmente não devia ter agido desta forma e deveria ter feito melhor, eu concordaria. Estaríamos os três de acordo: eu, o Bêbado e a Sofia. Mas não. Fui recebido com a empatia que precisava: que tinha sido um ótimo pai que acolheu as emoções do seu filho e o ajudou a coregular-se num estado mais calmo e tranquilo. Mesmo tendo julgado o esquecimento justificando-me com uma “consequência natural”. Mas fui incapaz de ver a paciência e acolhimento, os sinais de segurança que partilhei, o reconhecimento das suas emoções. Fui um bom pai, que não foi perfeito. Acolhi e dei o colo que muitas vezes não tive, e muitos pais não dão. Mas o que registei, à primeira vista, foi uma total insuficiência da minha parte. Como aquele comentário negativo, no meio de mil reparos positivos, que fica indelével na nossa mente.
Reparei que dilatei o espaço entre o estímulo e a minha reação. E nessa geografia habitou a compaixão, o amor, a consciência, a empatia, a aceitação. Olho para o que aconteceu e sorrio. Enquanto estive no Porto, tive direito a ter colo ao invés de ser colo. Tinha formação o dia todo para chegar a casa e ser mimado, acolhido. Voltei a ser sobrinho único por uns dias e respirei de outra forma. Este é um dos dons da minha Tia Predileta. Esse fôlego também é uma das estratégias que contribui para existir em maior consciência. A Sofia também é colo, que me permite abrir as asas e voltar sempre a porto seguro. Também tenho colo em amigos e família e só posso estar grato por esse enorme privilégio. O colo faz-nos muita falta, principalmente aquele que damos a nós próprios.
Até para a semana,
João
P.S. Tenho gostado muito de ouvir o podcast Um Homem Não Chora do Público, feito pela Maria Ana Barroso. Ouvi o episódio do Ângelo Fernandes sobre violência e abuso sexual nos homens e reforçou a noção que eu tinha da importância da experiência partilhada. A catarse que um desabafo entre os nossos pares pode ser. Gostei, igualmente, do episódio do Martim Sousa Tavares que faz uma desconstrução do que são masculinidades aceites ou rejeitadas, sobre a capacidade de não vermos o sofrimento dos nossos pares do sexo masculino porque fomos ensinados a suprir e não aceitar as suas emoções. A saúde mental nos homens ainda é um tabu e é vista, entre eles (nós), como um sinal de fraqueza. Precisamos de trazer estas conversas para a arena pública e normalizar a vulnerabilidade. Partilhem estes episódios com outros homens e façam reflexões conjuntas.