Olá,
A semana passada escrevi sobre a importância de fomentarmos autoestimas saudáveis nas crianças e as ferramentas importantes que elas adquirem quando temos sucesso na tarefa. Existem alguns pilares educacionais que sustentam práticas que contribuem para melhores autoestimas. Hoje queria falar-vos de uma que, apesar de parecer óbvia, não é fácil de aplicar.
Vivemos num mundo que é consequência da Era Industrial, dos Imperialismos passados e onde, globalmente, o capitalismo é a forma económica adotada. Muito do pensamento atual da humanidade, e formas de organização social, vêm da premissa Darwiniana de que sobrevive o mais apto. Isto pressupõe, claro está, a competição e a conquista: dos outros e do que nos rodeia, de nós próprios. Pegámos nesta premissa e aplicámo-la à nossa economia, às nossas formas de produzir. E, neste processo, moldámos por completo a forma como nos vemos enquanto sociedade, abandonando os ancestrais núcleos familiares alargados e comunitários - as aldeias que hoje metaforizamos e que tanta falta nos fazem. Fomos criando núcleos cada vez mais pequenos; a comunidade foi perdendo a sua relevância, dando lugar a uma exacerbação do individualismo.
Perdoem-me esta contextualização mas é importante para poder argumentar o próximo ponto. Numa sociedade onde a conquista, a produção e o sucesso são elementos chave, é natural que eduquemos as nossas crianças em premissas e padrões que propagam estes mesmos valores. Naturalmente, tornámos estes valores em fundações sociais: as nossas crianças aprendem-nos pela forma como nos organizamos, comunicamos, aquilo a que damos valor e importância. Como pais - que em tempos foram filhos - também fomos socialmente condicionados para valorizar estes padrões; sendo nós o principal elo de ligação emocional nos anos formativos das nossas crias, perpetuamos estes padrões, comportamentos, valores e premissas. Criamos um ciclo de aprendizagem social que é difícil de reconhecer e ainda mais complicado de desconstruir. Ao querer fazer diferente, estamos a remar contra a maré.
Um dos pilares de uma autoestima saudável é o amor incondicional. É um conceito que, à primeira vista, é autoevidente e tangível: arrisco a generalização para afirmar que a maior parte dos pais sente que ama os seus filhos de forma incondicional. É um chavão social e cultural bem visto e transversal à maior parte das pessoas. Proponho, então, uma reflexão mais cuidada para perceber se há mais qualquer coisa para além de uma frase feita e socialmente aceite.
Quando amamos incondicionalmente, significa que o ato de amar não trás qualquer tipo de condições. Amamos a pessoa em questão tal como ela é; aceitamos as suas particularidades - as boas e as menos boas - e não requeremos nenhuma adaptação comportamental ou situacional para partilharmos o nosso amor. Amamos sem “ses” nem “quandos” nem “mas”. Amamos, pura e simplesmente. Na nossa sociedade, gostamos muito de ser vistos como pais e cuidadores que amam dessa forma incondicional os seus filhos. Se perguntarmos diretamente a um pai ou uma mãe se ama o seu filho incondicionalmente, a resposta é quase sempre que sim. Mas quantos de nós, e a custo me incluo aqui, amamos, realmente, os nossos filhos sem lhes impor condições? É que podemos teorizar sobre a natureza do amor que nutrimos por eles, podemos conceptualizar o que significa a nossa paternidade ou maternidade. Ou intelectualizar o papel de cuidador e toda a carga emocional que esse papel acarreta. Mas da ideia - do quão e como amamos - à pratica vai uma enorme distância e testemunhamos esse distanciamento todos os dias, ao nosso redor. Na prática, a sociedade ocidental é opinativa e avaliativa e exige um certo e determinado comportamento das suas crianças. É a condição sine qua non do nosso tecido social. Exige a conformação dos pequenos seres às normas comportamentais e sociais dos adultos. Está normalizado: é um processo natural e que faz parte do crescimento. A questão que eu levanto é que a forma como educamos as nossas crianças choca com a incondicionalidade do nosso amor. São antitéticas.
Que feio, a bater com isso na janela.
Eu fico triste quando não comes tudo o que tens no prato.
Oh, assim já não gosto de ti.
Em cada uma destas frases - e haverão centenas de variações possíveis - demonstramos que só amamos ou gostamos dependendo de um determinado comportamento ou ação. Elas são utilizadas como ferramentas para moldar e manipular comportamentos nas crianças para irem de encontro às expetativas dos seus cuidadores e das normas que eles consideram relevantes. A normalização deste tipo de pedagogia - disseminada de forma geral pelas famílias de todas as classes sociais - ensina que para sermos amados temos que agir de uma determinada forma. Que o amor não é incondicional. Não me interpretem de forma errada, não estou a defender a total permissividade e desresponsabilização dos pais na educação do filhos. Pelo contrário, defendo que devem ser impostos limites claros (de segurança e saudável coexistência social) e salvaguardados os superiores interesses da criança. Mas existem outras formas de incentivar alterações comportamentais, mais assentes na construção da relação e ligação com a criança, na confiança nas suas capacidades e respeito pela sua integridade física e pessoal. Por defeito, mostramos que amamos as nossas crianças apenas e só quando elas se conformam às nossas regras e expetativas. E isso não é amar sem condições. Vejo, também, esta mesma atitude a ser perpetuada em pré-adolescentes, adolescentes, jovens adultos e adultos. Só somos amados se nos conformarmos. A nossa individualidade e expressão - se colidirem com o que é esperado - são ignoradas, desvalorizadas ou suprimidas.
“Ama-me quando menos mereço pois é quando mais preciso” - ditado sueco que aprendi com a Mia.
E faz-nos tanta falta o amor incondicional. Porque pressupõe a aceitação de quem amamos, na sua totalidade. Amamos os nossos filhos mesmo nos seus piores momentos. Com empatia e respeito e estamos lá para sermos faróis nessas tempestades, sem pedir nada em troca. Não estamos a julgar, nem a avaliar. Estamos a acolher, para depois poder guiar. Compreender os seres que temos à nossa frente. Segurando-lhes as mãos quando nos tentam bater e reconhecer as suas emoções até encontrarmos a brecha pequena que vai permitir o abraço. Respeitar o corpo deles, a sua saciedade e confiar quando dizem que não querem comer mais - sendo adultos responsáveis que depois não oferecem alternativas logo a seguir e disponibilizam apenas alimentos saudáveis em horários determinados. Dizer-lhes sempre que gostamos deles, mesmo quando fazem asneiras ou têm comportamentos que simplesmente estão a expressar necessidades prementes como cansaço, frustração, injustiça ou sono. Quem nunca?
Temos esquecido estas práticas nas nossas rotinas porque dão trabalho. Exigem que estejamos sempre conscientes e alerta para combater as formatações sociais e condicionamentos passados. E vão contra as normas da sociedade, que procura as repreensões imediatas - castigos, restrições, consequências - para conseguir os resultados mais imediatos. Talvez por isto muitos pais e cuidadores consigam resultados rápidos e eficazes no momento (”ou páras ou levas”, “em casa falamos”), sem pensar nas consequências a longo prazo. É a saída a que fomos habituados, é a que nos é exigida, é a forma na qual fomos condicionados. É, também, a mais fácil, que não exige esforço e permite que um piloto automático guie todo o processo. Andamos ao sabor da maré e a nossa descendência acaba encalhada. Lei do menor esforço.
Infelizmente, a maior parte de nós não tem o privilégio de poder viver numa comunidade isolada do mundo e destes padrões. Precisamos coexistir com estas exigências e padrões doentes e fazer o melhor que podemos. Não tenho dúvidas que a grande maioria dos pais quer amar os seus filhos de forma incondicional. Eu sou um deles. E, como outros, também sigo em piloto automático, também quero conformar os meus filhos às exigências da maquina de produção que é a nossa sociedade. Também avalio, julgo e quero manipular rapidamente os comportamentos. Erro em todas as frentes que elenquei. Mas já errei mais. Vou tendo, gradualmente, melhor noção do que posso fazer melhor. Tendo a observar mais, constatar mais, acolher mais. Evito juízos, avaliações, chantagens. Tento amar, a maior parte do tempo, sem “ses” nem “mas”. Porque, realmente, amo os meus filhos sem condições. Quero aceitar cada detalhe como ele é. Criar uma vida que acolha cada particularidade da melhor forma possível. Para que eles cresçam de forma livre e autêntica. E, assim, desenvolvam uma autoestima saudável. Trabalho todos os dias para isso, mudando comportamentos e padrões em mim que não servem esta minha intenção de amar sem condições. Medito mais, respiro mais, exercito-me mais, como melhor, tento manter uma higiene cuidada nos conteúdos que consumo. E ainda me falta tanto. Mudar o meu discurso interno sempre agarrado a um pessimismo e autocrítica constantes. Comunicar de forma mais consciente. Gerir melhor os meus sequestros emocionais e consequentes mudanças abruptas de humor. Gradualmente, com esforço e consciência, vou mudando. Não há meta; uma vez mais, o caminho é a finalidade em si.
Amar sem condições é uma teorização que pode ser posta em prática. Às vezes, consigo. Outras, não. É um processo extenuante, porque lutamos contra as intuições condicionadas e exigências de uma sociedade que dá prioridade a tudo menos à saúde mental e emocional de quem a integra. Este é um problema multidisciplinar; quase tudo precisa de mudar para criarmos uma sociedade onde amar sem condições é a norma, não a exceção. Mas os primeiros passos, as primeiras quebras de padrão, começam em casa, com as famílias. Começam em nós, pais e cuidadores. Sejamos, então, a mudança que queremos ver no mundo.
Até para a semana,
João
P.S. Ouvi recentemente uma conversa muito bonita sobre espiritualidade no processo de nos tornarmos pais. O escritor, realizador e podcaster Ian Mackenzie recebeu o Adam Jackson dos Sacred Sons. Sobre o reconhecimento da dádiva que é a gestação de uma nova vida, o papel para o qual somos chamados quando sabemos que vamos ser pais e a benção -e lição de humildade - que é termos um filho nos nossos braços. Também se fala sobre perda gestacional e sobre olhar para estes processos com compaixão e coração aberto. Há formas saudáveis de viver a masculinidade e esta foi uma conversa muito inspiradora para mim. Lembrou-me que o papel do Homem é aquele que decidimos construír e pode ser construído tendo o amor como base. Partilho-a aqui convosco.
Muito bem, João, fazes sempre reflexões interessantes. Vou só tentar comentar, do meu ponto de vista budista.
Eu acho que só podemos fazer o melhor que podemos fazer em cada momento. Nesse sentido, o nosso amor poderá ser absoluto nesse momento. Mas se virmos de um ponto de vista "teórico", "atemporal" podemos re-analisar daqui a uns anos e perceber "Ah, se calhar até poderia ter feito melhor". Quase de certeza que daqui a séculos haverá teorias mais aperfeiçoadas sobre a psique humana e como a educar. Mas não nos poderemos considerar culpados face a não as conhecermos.
De qualquer forma, o amor dos pais é talvez o mais forte que existe, diz-me o meu pai. É interessante que Buda disse que devíamos "amar cada ser, como uma mãe protege o seu filho único, pondo em causa a sua própria vida" (Metta Sutta). Mas muitas pessoas desconhecem ou estão tão condicionadas por fatores externos favorecidos por esta sociedade doente, que já só sabem funcionar com ameaças aos filhos.
Também sobre Darwin que citaste: quem sobrevive mais é o mais apto. Penso que o grande desafio da nossa época é passar de uma interpretação violenta de Darwin (tenho de ser mau e apropriar-me dos recursos de todos os seres à minha volta, ser o número 1) para uma interpretação cooperativista (tenho de cooperar, ajudar para ser ajudado, e ver de que formas prejudico os outros, e simplesmente saber desfrutar o facto de não ser o número 1). Esse é o grande desafio social, por exemplo, do veganismo e do pacifismo em geral. E felizmente há muitos sonhadores com um mundo melhor, como nós.
O meu favorito até agora. Parabéns João.