Olá,
Num dos meus sonhos recorrentes não consigo terminar a minha licenciatura. Os anos sucedem-se e vou deixando sempre cadeiras para trás. Mais anos de propinas, de sobrecarga, de pressão. Enfrentar vezes sem conta os professores que mais detestava. De sentir que estou a desiludir o meu pai e a desrespeitar o seu apoio - é interessante a forma como o subconsciente deixa os meus mortos de parte. De me sentir insuficiente e incapaz de concluir a minha formação académica: porque não consigo compreender matérias, ou aprender determinado assunto. Porque não sou capaz.
A escola onírica tem, curiosamente, sempre o mesmo aspeto: mistura uma escadaria do Liceu onde fiz o terceiro ciclo mas tem uma arquitetura - e gama cromática - muito semelhantes à ESCS, em Benfica. Nunca a frequentei e, as poucas vezes que lá fui, foi para visitar a Sofia quando lá estudava. No sonho, fica-me sempre a impressão de não me enraizar nas minhas turmas porque, como bom repetente, estou sempre a ter novos colegas de ano para ano - misturando o processo de reprovação do ensino obrigatório com o do ensino superior. Um estranho numa terra estranha. Aparecem-me momentos bons, de descontração e boa vida estudantil. Mas há sempre uma sensação de desconforto. O Expressionismo Alemão cunhou uma expressão que usei como título para um autorretrato que fiz para a cadeira de videoarte da minha licenciatura: unheimlichkeit. Significa, numa tradução livre, estranheza inquietante1.
Acordo sempre inquieto, depois destes sonhos. É-me muito difícil lidar com esta sensação de não conseguir concretizar ou finalizar. Ilumina certas fragilidades adquiridas nos meus anos formativos, inseguranças que transbordaram para a idade adulta. Aponto o dedo a toda uma estrutura social que dá importância à conquista, ao feito, ao objetivo. Às pessoas que retiram valor próprio das suas conquistas: profissionais, desportivas, financeiras. Nunca me fez muito sentido isto. O valor de alguém é intrínseco na sua maneira de ser e na forma como escolhe viver a vida. Nascemos já com pleno valor, não precisamos de conquistar nada para nos afirmarmos, seja de que forma for. Infelizmente, esta maneira de ver e pensar o mundo choca de frente com a realidade. Foram já muitos os dissabores e, cheira-me, vão continuar a ser.
Cresci a ouvir dizer que precisava fazer isto, ou aquilo, para ser alguém. Como se a minha existência fosse condicional e só pudesse ser quem era mediante a conquista de algo. Talvez por isso tenha demorado demasiado tempo a perceber quem sou, por esperar sempre atingir algum tipo de meta; por querer caber em caixas cujo tamanho era manifestamente insuficiente para mim. Precisava estudar para ser alguém, ter um canudo, ter um trabalho, ter dinheiro, ter um corpo apetecível, encaixar-me na norma vigente e imposta. Não poderia ser sem nada disto. E nos dias de hoje, seremos mais que que isto? Poderemos ser mais que isto?
Nós somos alguém a partir do momento em que nascemos. Somos feitos do resultado de uma lotaria social e genética e da forma como somos condicionados a lidar com a família em que nascemos, a classe onde crescemos e o corpo que habitamos. Somos feitos de gostos, preferências, implicações, traços de personalidade. Temos vários graus de maturidade emocional. Construímos valores alinhados com as morais vigentes e criamos as nossas. Ocupamos um espaço num espetro social: somos a soma das nossas escolhas, condicionadas e livres. Somos todos alguém pelo simples facto de existirmos.
Ter esta consciência tem implicações profundas no desenvolvimento das crianças e nas perceções que criam do mundo que as rodeia. Cuidamos e amamos livre de condicionalismos? Devemos plantar a noção de que só as amaremos caso façam X ou Y? Ou amamos, de facto, de forma incondicional? Se há um valor intrínseco na nossa existência, então não podemos agir senão de forma incondicional. Isto é, sem impor condições para respeitar a existência de alguém, para cuidar de alguém, para amar alguém. E não devemos esperar nada em troca: não há amor quando, por detrás dele, há expetativas. Ele quer-se livre e altruísta. As expetativas são criadas e têm raízes profundas nas ilusões frágeis de como o mundo deveria ser.
Também tenho expetativas para os meus filhos: quero que tenham conforto e sucesso na vida. Esta última frase tem significados totalmente diferentes de pessoa para pessoa. Para mim, quero que tenham teto, comida, conforto térmico, capacidade de custear o essencial da vida, com algo que sobre para cultivo intelectual e lúdico. Sucesso, para mim, é que consigam suportar tudo isto fazendo algo que lhes dê algum prazer e que esteja alinhado com as suas capacidades, gostos e valores. É muito difícil sentir-me insuficiente. Ainda hoje sinto que tenho que provar constantemente o meu valor, o meu intelecto. Sonho que não consigo cumprir. Que não sou capaz. Estou a reproduzir o que interiorizei ao longo da vida. Hoje vivo vários processos de desconstrução desta forma de ver o mundo e tenho plena noção do quão prejudicial ela é para mim e para quem me rodeia. Quero que os meus filhos sintam isto o menos possível. É uma das intenções que tenho sempre muito presente quando lhes reconheço o valor enorme que têm pelo simples facto de existirem. Que nunca me esqueça de o fazer.
Abraço-vos,
João
Tenho a sorte de ter quem partilhe livros comigo e a, ainda por cima, livros bons. Terminei esta distopia passada na atualidade que me fez refletir e colocar em perspetiva várias coisas. Gostei do livro e fiquei com aquela sensação de que o devia ter lido na língua original, em inglês. Fico sempre com a sensação de que algo se perdeu na tradução. Mas a história, e principalmente as personagens, guiam-nos por uma humanidade que teimamos em que esquecer. Obrigado Cris! Que continues a passar-me livros que me impactam, mesmo que os suje com chocolate quente.
Vi, finalmente, o “She Said”. Tenho uma profunda admiração por jornalistas de investigação e, quando li o livro há um par de anos, fiquei siderado com a humanidade que serviu de força motriz para contar as histórias de décadas de abuso dentro da indústria de Hollywood. Espoletou o movimento #MeToo e trouxe às conversas do dia a dia a violência de género e abuso das dinâmicas de poder. Está na Netflix nestes dias e, digo-vos, vale muito a pena. Tem no elenco algumas das atrizes visadas a fazer delas mesmas, utiliza gravações áudio de algumas das vítimas e tem um conjunto de atrizes e atores que dão uma profundidade imensa à narrativa.
precisamente o que senti recentemente a ver o Nosferatu, do Robert Eggers, que faz uma nova abordagem ao clássico de 1922 do Murnau.
Também sonho e penso muitas vezes que se calhar não acabei o meu mestrado, provavelmente porque há anos que não faço nada com ele (nada como quem diz; na verdade faz parte de mim e tenho a certeza que a forma como abordo determinadas tarefas no meu trabalho e até no meu dia-a-dia sofrem de alguma forma influência do que aprendi em comunicação de ciência). De resto, sobre a questão das expectativas, acho que é inevitável tê-las, para os outros, mas sobretudo para nós próprios. Elas não nascem necessariamente de alguém, como um pai, a dizer-nos que temos de ter boas notas e escolher um curso que dê dinheiro, mas das comparações que vamos fazendo ao longo da vida (sobretudo agora que as vidas dos outros, ou a vida que os outros efabulam, está exposta nas redes sociais). Acredito que haja quem seja mais resistente a essas pressões externas e espero que a minha filha venha a ser uma dessas pessoas, mas acho que é importante não nos massacrarmos tanto com questões que talvez não estejam tanto sobre o nosso controlo como pensamos.
Muitas e muitas vezes acordo sobressaltado, angustiado depois de acordar de algo que em sonho parecia real...desta vez.
A questão das expectativas é crucial para estudar várias dimensões da vida social.
Padronizam-nos à nascença, para sempre.
E, afinal, quem decidiu nascer? E quem escolheu o que ser, como, onde?
O "menos dotado", não consegue porque não quer; o "feio" não arranja alguém porque não se esforça (afinal, há sempre uma "tampa para cada panela") e quem nos ensinou a só apreciar o físico?
O criminoso, escolheu o que fez e faz e vai continuar a fazer se for "atirado" para trás das grades?
O adúltero, tem culpa, ou viu e segue padrões?
A verdade pode ser "sim" a todas as perguntas, ainda assim, ninguém escolheu ser e fazer o que é e faz!
A nível de evolução de consciência dos comuns, não podemos continuar, só a atirar culpas.
Devemos condescender diante do errado? Não! Devemos entender que a "cura" é um caminho conjunto, que desistir do outro não é hipótese, que abrir portas à aceitação da diferença é preciso e que a nossa liberdade termina sempre onde começa a do outro, é uma verdade e princípio eterno!