A Solidão da Mentira
Ensaio sobre a compulsão masculina para a construção de realidades alternativas.
Olá,
Não tenho a certeza de que conseguirei carregar no botão "Agendar" no final desta crónica. Este texto nasce, primeiramente, do desconforto que senti ao ler o texto da "O Homem e a Solidão da Mentira". Primeiro, porque — como pude escrever num comentário — a carapuça serviu-me. Depois, da necessidade de trazer a lume a perspetiva masculina sobre uma daquelas coisas que sabemos mas não falamos. Por fim, para descobrir se consigo reunir a coragem necessária para tornar esta reflexão pública. Se me estiverem a ler é porque, de alguma forma, senti que é algo que devia partilhar.
O título deste texto é parcialmente roubado à publicação da Ana. É precisamente uma análise à solitária forma de mentir dos homens. Tal como a autora, também acho que as mulheres mentem; mas acho que mentem de outra forma, com outras causas e, talvez, de uma forma iludida. Falta-me o lugar de fala para prosar sobre isso de forma séria, pelo que vou remeter-me à realidade masculina, que conheço bem por experiência própria e coexistência com os espécimes do meu género. Pretendo, pois, refletir sobre a masculinidade mentirosa, nas formas em que se manifesta e nas causas dessas manifestações. Estou consciente de que vou fazer generalizações: nem todos os homens mentem da mesma forma, ou desenvolveram mecanismos insidiosos como resultado da educação e socialização no seu desenvolvimento. Há um espetro nesta análise e os homens que conheço situam-se em posições diferentes do mesmo. Também vou falar do contexto em relação heterossexual mais especificamente. Ciente de que a mentira também abunda em círculos de amigos homens, desde hipérboles a invenções mirabolantes, vou olhar para o contexto relacional heterossexual porque:
É o que conheço e, mesmo podendo falar do lugar, sinto que me falta o lugar de fala.
A relação com o sexo oposto é o terreno mais fértil para a vulnerabilidade masculina. Talvez porque os homens sentem que as mulheres têm um entendimento maior da dimensão emocional, ou porque veem nelas uma compreensão que não encontram no cérebro masculino. Esta afirmação baseia-se na minha experiência empírica, na minha vivência pessoal. É também uma conclusão intelectual, resultante da minha compreensão e reflexão sobre o mundo com o qual interajo há quase quarenta anos.
Este texto funciona como uma resposta ao desafio da Ana para escrever sobre este tema. Respondo, como os proto-intelectuais do início do século XX, à reflexão original, com a qual concordo plenamente, e que começa com: "Os homens têm uma certa propensão para mentir e esconder no contexto da relação heterossexual (o único que conheço)".
Há uns dias, o meu filho mais velho perguntou qual a diferença entre uma história e uma mentira. Foi das perguntas mais filosóficas que me fez, cuja resposta precisou de uma reflexão rápida que gostaria de desenvolver aqui, com calma. Uma história é uma narrativa com princípio, meio e fim. Normalmente, é-lhe dado um contexto específico: na oralidade, percebemos se é um relato de algo que, supostamente, aconteceu ou se é uma efabulação, um apontamento de humor ou uma dissertação filosófica e imaginária. É costume o autor dessa história assumir essa contextualização. Por vezes, isto espoleta perguntas como "mas isso aconteceu mesmo?" ou "mas isso é a sério?" — reafirmações para que o processo comunicativo decorra da forma mais clara possível. Dei-lhe uma resposta mais sucinta: a diferença está em todas as pessoas compreenderem se se trata de uma história verdadeira ou de uma mentira.

Então porque é que mentimos e criamos versões ilusórias de quem somos? O que nos leva a querer construir essas versões, a ser outra pessoa? Porque sentimos que não somos suficientes? Porque nos iludimos tão facilmente para moldar a realidade à visão que temos do mundo? De onde vem esta insegurança que mina, em diferentes graus, as relações heterossexuais?
Vamos à parte difícil: porque é que em diferentes momentos da minha vida menti ou criei uma narrativa falsa sobre mim ou sobre algo que me aconteceu? O que me levava a querer ser mais que os outros, a afirmar-me através de peripécias mirabolantes ou outras mais credíveis? Porque é que a necessidade de ser admirado ou percecionado como alguém fascinante, interessante e cativante era de tal ordem que me impelia à invenção e à mentira? E de onde vem este sentimento terrível de que o que nós somos não tem valor suficiente, que precisamos afirmar o que somos, quem somos e porque somos? Porque é que senti que tenho de justificar a minha existência?
Pois, já menti. A mim mesmo, iludindo-me e convencendo-me de coisas que não eram bem assim. Às mulheres com quem me relacionei. Por medo, por insegurança, para esconder, para parecer melhor, para não ser julgado, para não ser visto como realmente sou. Para projetar a minha ideia de masculinidade, humanidade, integridade. Para poder exercer esta genética egoísta e centrada em mim próprio. Releio estas últimas frases sentado num comboio e sinto vergonha. Porque saber que o fiz demasiadas vezes: umas de forma deliberada e outras de forma inconsciente e condicional.
Já o fiz mais.
Houve uma altura em que seria impossível escrever este texto. Porque seria assumir e enfrentar uma parte integrante de mim que esteve sempre nas sombras, nas profundezas, emergindo apenas quando a necessidade ou oportunidade assim o ditava. Mas aprendi em terapia que é preciso colocar um foco de luz nestas sombras para as vermos melhor. Quem sabe, talvez, compreender um pouco melhor essa escuridão para um dia a poder integrar na minha vida. Acolher essa minha versão do passado.
“Esta necessidade de mentir ou esconder parece vir de um medo da exigência e da complexidade emocional das mulheres, mesmo que nada lhes seja cobrado.”
Uma das provas cabais de que vivemos numa sociedade ultra patriarcal e masculinizada é a formatação que os homens sofrem desde crianças. Há uma aniquilação emocional desde tenra idade que deixa profundas marcas na forma como aprendemos o mundo. A repetição de padrões tóxicos e misóginos, a constante objetificação e sexualização da mulher, a aguerrida competição e procura pela validação, aceitação e submissão dos outros. Este Darwinismo social que procura justificar o injustificável. A Ana fala aqui do mito da exigência e complexidade emocional da mulher, uma perceção generalizada e disseminada. Talvez seja a pouca literacia emocional dos homens que faz parecer a das mulheres tão grande, rica e assoberbante. Não que elas sejam mais intensas, ou complexas, ou difíceis. Mas porque nós somos demasiado simples, com pouco vocabulário e inteligência emocional, habituados a viver numa bolha de privilégio que não questiona a falta de ferramentas para lidar com as emoções. Muitas vezes nem lhes sabemos dar nome.
Nada do que escrevi são desculpas ou justificações. Não há aqui qualquer tentativa de desresponsabilização. Este texto é somente um mea culpa e consequente análise da causa e da forma do problema. É inegável o papel social do condicionamento da masculinidade vigente. Perpétua comportamentos nefastos e opressivos nas crianças do sexo masculino desde tenra idade; impõe expetativas comportamentais e de um papel de género. Fui criado nas premissas vigentes da altura:
Um homem não chora.
Não sejas mariquinhas.
És uma menina?
Faz-te homem.
Estás a chorar? Queres que te dê uma razão para chorar?
Isso foi um pouco abichanado.
Podia continuar a lista infindável das enormidades que fui ouvindo enquanto crescia. A somar a esta exigência cultural de respeitar a normatividade dos comportamentos esperados, sim, há um papel da mãe na forma como se lida com a tal “complexidade emocional das mulheres”. No meu caso em particular, e não querendo entrar em detalhes, senti sempre uma necessidade de estar a ler emocionalmente a minha progenitora para tentar perceber com o que contar em determinado momento. Aprendi, desde muito cedo, a ler as mudanças de humor e a lidar com a instabilidade emocional dela. Infelizmente, não consegui reunir as ferramentas necessárias para, em adulto, não transpor os condicionamentos criados nesta altura. Projetei nas minhas várias companheiras a mesma insegurança comportamental. Perguntei, demasiadas vezes, “está tudo bem?”. E utilizei uma das receitas que aprendi: se mentir, se criar uma realidade, talvez consiga amenizar reações. Ou antecipar. A verdade às vezes não é a melhor coisa: pode ter consequências imprevisíveis.
É óbvio que a mentira em contexto relacional tem origens mais complexas e não vou culpar uma parte ínfima de quem a minha mãe era para me desresponsabilizar. Considero que a melhor parte de mim aprendi com ela, incluindo a capacidade de olhar para mim mesmo. Foi uma aprendizagem tardia, mas mais vale tarde do que nunca.
“Mas há algo neste tipo de mentira branca, inconsciente, automática e gratuita, ligada à identidade do homem, sobretudo no contexto da família, e que terá provavelmente origem na sua educação (mentir é melhor que ser vulnerável) e na relação com a mãe (que nunca quererá desiludir).”
Também, mas não só. Mentir é melhor que ser vulnerável, certo. Mas mentir é melhor que assumir a consequência da verdade: pode poupar-nos a dissabores, humilhações, constrangimentos e até agressões físicas. Ultrapassa a questão da vulnerabilidade e abraça muito o medo do julgamento dos outros. O que poderão pensar, dizer ou fazer em relação a nós. Na relação com a mãe, não é só não querer desiludir. É também não querer espoletar um conflito, irritar ou chatear. Acabamos por criar uma habituação - uma tolerância - à mentira branca como forma de gerir o que nos rodeia. Escondemos o telemóvel enquanto respondemos a uma mensagem. Temos medo de um ciúme, de uma desconfiança. Não assumimos com quem estivemos, principalmente se forem outras mulheres, com medo do que se possa pensar. Da insegurança que possamos criar. Mudamos o relato do que aconteceu numa interação social e omitimos os detalhes que achamos que podem ser delicados. O que é fascinante é que é precisamente este tipo de comportamentos, de omissões, de mentiras brancas, que criam a insegurança e reação emocional nas mulheres. Há uma camada de culpa na origem deste comportamento: às vezes podemos estar a falar com outra mulher, ou ter conversado com outra mulher, ou ter saído com amigas e, se sentimos algum tipo de desconforto com isto é porque sabemos que há aqui algo mais. Pode ser uma fantasia nossa com uma dessas mulheres, ou interações mais insinuantes de parte a parte. Pode ser a frustração com a exclusividade da relação que trás ao de cima o desejo pelo fruto proibido. Pode também ser a deliberada intenção em querer algo mais - e ilícito - com a outra mulher. Então criamos teias de comportamentos - e mentiras - que nos acompanham durante anos. Truques e receitas comportamentais que acabam por se fundir com a nossa identidade. Acabamos por ter uma existência falsa, que não podemos assumir e criamos uma crosta sobre alguém que só nós conhecemos verdadeiramente. É uma solidão que nos vai engolindo nas areias movediças dessas mentiras.
Há uma outra dimensão desta realidade. A quantidade de homens - e isto é transversal aos géneros, as mulheres padecem do mesmíssimo mal - que se acomodam em relações porque se habituam ao que conhecem, mesmo sentindo-se desconfortáveis, desinteressados ou já saturados nas suas relações. Então a ilusão de que as coisas são assim - a companheira, as relações - começa a confundir-se com a narrativa mentirosa que contam a si mesmos para validar a permanência na relação já disfuncional. Eventualmente, criam-se mentiras cada vez menos brancas e vive-se em plena distopia. É aqui que as mentiras se acentuam. Que se esconde e omite mais.
Criamos mentiras para deslumbrar, porque vamo-nos convencendo de que a verdadeira história de quem somos não é suficiente. Criamos mentiras para nos enaltecer, quando nos sentimos pequenos aos olhos do mundo, dos outros. Criamos mentiras para satisfazer a nossa necessidade de grandeza, de conexão, de sermos vistos, admirados. Mentimos para criar valor próprio. Mentimos para criar autoestima. Mentimos para poder continuar a mentir. Criamos uma realidade ilusória e acabamos nessa solidão, presos, sem escapatória possível. Talvez seja por isso que um novo começo, numa nova geografia, com novas pessoas, seja tão apelativo a muitos homens que fui conhecendo. Parece que podemos começar uma nova vida, literalmente. Uma nova história. Cheira-me que provavelmente serão novas mentiras. Uma outra tentativa de contar uma ilusão. Talvez acabemos condenados a mentir para sempre, à procura de ser aquilo que não somos e esquecendo que somos algo apenas pela simples razão de existir. A nossa identidade acaba por se fundir com a mentira e as narrativas que contamos aos outros sobre nós. Então acabo a perguntar-me como minorar a necessidade de precisar de mentir, enaltecer e criar narrativas que não correspondem à verdade dentro do contexto relacional?
Não tenho resposta para estas perguntas.
Sei, mesmo que nem sempre o tenha praticado, e ainda hoje me seja difícil praticar, que é a conversar que nos entendemos. Os homens precisam de assumir que o universo interior não é razão para ter vergonha e que podem ser acolhidos nas suas hesitações, inseguranças, desejos e fantasias. Mas acho que isto é muito difícil para homens que foram educados para nem sequer perceberem o que sentem. Quantos não confundem compulsão adúltera com desejo ou flirt? Quantos têm a literacia emocional para verbalizar junta das companheiras o que sentem, o que pensam? Precisamos pensar tudo isto em conjunto, como sociedade. E também em casal. Porque nos falta maior maturidade nas relações. Para isso, os homens precisam aceitar que há um propósito na terapia e querer fazer esse trabalho processual de olhar para os nossos comportamentos e condicionamentos com intenção inquisitiva. Tornar as conversas entre casais sobre emoções algo comum - uma missão que parece hercúlea, mesmo com os casais mais predispostos a tal. Mais presença no dia-a-dia e autoconsciência - para termos tempo de sentir e perceber o que estamos a sentir em cada momento. Para refletir sobre o que sentimos, numa mundo onde não há espaço, nem tempo e tudo corre demasiado rápido. Olhar para a forma como educamos as nossas crianças em casa, na escolas e, sobretudo, socialmente. As mensagens que insistimos em enviar, as narrativas que construímos nas televisões, redes sociais e plataformas de streaming. Há um papel importante da mulher neste processo - na forma como é educada e consequentemente percecionada. Não tem qualquer tipo de dever, atenção: é um trabalho e responsabilidade masculinas. Mas todos os seres humanos precisam de ajuda, independentemente do género. Ouvi há pouco tempo uma frase numa tertúlia com amigos: “Se podes, deves”. Num contexto de empatia e amor é a receita perfeita para a cooperação e altruísmo.
Abraço-vos!
João
Uma citação que achei pertinente partilhar juntamente com o texto desta semana: “Everyone believes very easily whatever they fear or desire.” - Joan de La Fontaine
Ainda a propósito [em inglês]:
E um documentário sobre alguém que já segui há uns anos e quando fui saber dele descobri que se tinha suicidado. Foi das pessoas mais importantes da internet e um acérrimo defensor da liberdade digital. Deixo aqui o trailer, mas podem encontrar o documentário na totalidade no youtube.
Obrigada por partilhares esta reflexão connosco, por seres vulnerável e honesto. Ainda há muitos homens, mesmo muitos, com grandes dificuldades comunicacionais: não sabem conversar porque não sabem como se expressar e, como consequência, muitas vezes nem tentam.
O meu companheiro não mente (pelo menos nunca o apanhei numa mentira), mas tem muita dificuldade em falar de sentimentos — agora bem menos do que no início, felizmente. É urgente reconstruirmos a ideia do que é ser homem, em vez de continuarmos a perpetuar mitos como o de que “os homens não choram” e outras crenças do mesmo género.
Feliz por saber que criarás futuros adultos mais capazes de serem honestos e de se abrirem ao diálogo e à verdade.
Um abraço (e até logo!)
Nunca me senti homem. Não no sentido de género, mas numa moldura que me foi de alguma forma imposta. Sempre tive uma sensibilidade para causas sociais e muitas vezes em jantares de família ouvi dizer "és tão emocional" e coisas do género. Com o tempo entendi que o silêncio era o melhor apaziguador das emoções. Mas nunca vi isso como algo relacionado com a minha condição masculina. Será que por ser mulher teria mais espaço para me expressar? Duvido. Eu duvido porque assisti muitas vezes a situações em que se a mulher disser algo não é ouvida, literalmente, e se o homem disser o mesmo terá toda a atenção do mundo. Por isso, eu não sei se temos assim tão pouco espaço para expressar as nossas emoções.
A minha educação foi numa escola de ensino artístico, desde cedo, encontrei-me num doce conflito: amante de artes e de desporto. Tanto gosto de ver um museu como assistir a uma corrida da F1. Por isso, para mim é mesmo difícil ver na minha vida as mesmas dificuldades impostas pela sociedade contra a inteligência emocional masculina que hoje em dia se fala. Também as tenho mas nunca relacionei isso com o género.
Aliás, acho que até me sinto mulher nesse ponto. Se as mulheres mostram as suas emoções são consideradas histéricas - creio que quando as pessoas diziam "és tão emocional" era uma crítica mais nesse sentido. Não são só os homens que são criticados pelas suas emoções.
O golpe maior na minha vida sobre este assunto foi a perda do meu pai, um buraco profundo que me fechou em casa, numa agorafobia paralisante que roubou um ano inteiro da minha vida. No funeral ouvi vozes por todos os lados a dizer “és o homem da casa”, como se isso fosse uma responsabilidade irremediavel para um rapaz de 19 anos que nem emprego tinha.
Como podia eu ser o “homem da casa” se deixasse a minha mãe e irmã sozinhas para ir à universidade? Adiei a minha entrada na universidade, mudei de área para ficar perto.
E aquelas pessoas que achavam que eu não devia estar muito bem porque não chorava em público nem me vestia de preto. Não, eu não tinha vontade de chorar. Essas palavras foram muito cruéis e sim, aí senti essa coisa de ser homem que falas. Dessa obrigatoriedade de ser a figura central da família.
A mentira dessa masculinidade que me foi imposta foi o que mais me solidificou em isolamento. Mas também o que me ensinou a conhecer-me melhor e ao mundo, sem ter de pedir permissão.
Alonguei-me um pouco, espero que faça sentido esta perspetiva algo diferente mas também igual de alguma forma.